“A primeira emoção que tive em Cachoeira, permanece atualizada na afetividade e no respeito àquelas senhoras conhecedoras dos fundamentos dos orixás e dos voduns, e também de sua sabedoria de como eles dialogam com os santos da igreja, seja no culto comum, na louvação cotidiana ou no tempo das festas do povo do axé, que tem como tema primordial a vida, ou a vida relida pela morte, mas sempre vitoriosa vida” .
Raul Lody.
A Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte começou como um grupo de mulheres negras, que uniram forças na década de 1820, com o objetivo de angariar fundos para a compra de cartas de alforria, assegurar a cada membro um enterro adequado e dar proteção aos escravos fugitivos. A despeito da abolição da escravatura em 1888, gerações de irmãs vem, fielmente, realizando as festas religiosas anuais, mantendo vivas, deste modo, as tradições antigas e os elementos de matriz africana de sua ancestralidade.
CACHOEIRA – UM POUCO DE HISTÓRIA
Situada na Baia de Todos os Santos, às margens do rio Paraguassú, na parte côncava,. recuada e entrecortada por diversos rios, chamada de Recôncavo, o Município de Cachoeira, teve um papel muito importante na colonização do Brasil. Apresentou historicamente um desenvolvimento de sua economia baseada nas culturas açucareira e fumageira. Assim pode-se dizer que a atividade comercial e a formação de corpos populacionais coloniais serviram basicamente para fomentar o principal objetivo da Coroa Portuguesa.
A vila primitiva de Cachoeira nasceu de um engenho. Em 1559, Mem de Sá promoveu na região uma entrada para colonizar, matar e expulsar indígenas e após incessantes ataques até o ano de 1610, este sítio se formava e se desenvolvia, mesmo com seus solos arenosos impróprios para o cultivo de açúcar, foram cedendo espaço à produção fumageira, isso porquê o fumo era primordialmente utilizado como moeda de troca no tráfico de escravos, muito apreciado em África por ter um sabor adocicado.
Cachoeira estava localizada em uma região privilegiada entre a fronteira do Recôncavo e do Sertão, duas regiões economicamente complementares e Cachoeira era considerada a “porta de entrada para o Sertão. Desta forma, ela recebeu muitos desbravadores, que enfrentavam situações inóspitas, abrindo caminhos, buscando riquezas minerais, defendendo o território de invasores estrangeiros, ocupando e povoando o território, expulsando e dizimando os nativos.
Considerando a sua trajetória e significância, Cachoeira deixou suas marcas históricas, inscritas na cultura material e imaterial. Foi a região de maior relevância para a economia da Capitania da Bahia, nos três primeiros séculos de história luso-afro-ameríndio e hoje mantém seu legado como sítio arquitetônico, com seus casarios, suas comidas, seus ritmos, suas festividades, sua religiosidade e seu imenso patrimônio cultural.
A Irmandade e o Sincretismo Religioso
As irmandades, de certa forma, historicamente desde o império romano, início da era cristã, eram consideradas pagãs, por serem marginalizadas pela sociedade e cerceadas pelas autoridades. As irmandades carregavam um servir social e acolhia diversos cristãos para trabalhar em favor dos mais necessitados, porém com a oficialização do cristianismo como religião oficial no século IV, a responsabilidade social ficou destinada às igrejas, ficando também a encargo de administrar as irmandades oficiais, agindo de forma a gerenciar uma permissividade controlada diante de ritos e costumes tradicionais, algo próximo a ressignificação de signos e símbolos para conferi-los a incorporação de conteúdos cristãos.
A política cristã de adaptação cultural foi praticada amplamente pela igreja que passou a tolerar paraliturgias – celebrações, cultos e festividades não pertencentes a igreja que foram então incorporadas ao calendário eclesiástico.
Com a prática assumida dos tempos de colônia, o Brasil apresentava duas tendência de formação de irmandades. De um lado as irmandades cujos sócios pertenciam a diversificadas classes sociais, de outro irmandades específicas para diferentes segmentos, divididos por ofícios, estatuto social, cor da pele e ambas ligadas a um santo de devoção. Desta forma, as irmandades negras, assim como a devoção aos santos de cor só foi tolerada pela igreja a partir da confluência e cooptação de escravos no processo de cristianização, assim as irmandades representaram para os africanos escravizados no Brasil um instrumento de acomodação e de aculturação. Porém, é fato que eles próprios transportaram sua identidade cultural, a partir de seu modo de ser, pensar e agir. Neste sentido, as irmandades foram, por muito tempo foram encaradas como um lugar de permissividade aos africanos, que ao promoverem suas festividades ( lundus, batuques, calundus, mascaradas, reinados) vistas pelos senhores de engenho como distração, uma forma prender a atenção para não caírem em “perversidades e subversões” e a sua devoção aos santos católicos seria então a garantia para o branco de seu consequente controle e vigilância sobre seus comportamentos.
No entanto, as irmandades foram, de fato, vias de mão dupla pois tinham a incumbência moderar tensões sociais e de legitimar os africanos e seus descendentes um lugar para a prática de atividades de cunho político. Ao participar das festividades católicas, os escravos podiam atravessar as fronteiras do trabalho, mesmo que estivessem fechados nas senzalas, os negros catolizados movimentavam-se no mundo dos brancos, pelo menos no âmbito de representação, enquanto faziam suas festas, procissões e enterros.
“Os negros AFRICANOS não podiam ser, sentir-se ou parecer brasileiros sem ser ao mesmo tempo católicos”
PRANDI, REGINALDO.
REFERÊNCIAS SOCIAIS DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS: SINCRETISMO, BRANQUEAMENTO, AFRICANIZAÇÃO.Diante disso, as irmandades foram essenciais para contemplar a cidadania do povo negro africano, que em sua grande maioria eram associados diretos e ativos nestes coletivos. Na Bahia, até a primeira metade do século XIX 90% do total de africanos e descendentes, escravos ou libertos, participavam em diversas irmandades.
IRMÃOS DE COMPROMISSO – AS IRMANDADES NEGRAS
A escravidão e a diáspora foram responsáveis pela dissolução de laços consanguíneos e foi por meio das irmandades (catolicismo negro) uma reaproximação de laços socioafetivos entre os ditos “irmãos (as) de compromisso”, aparentados dentro das associações.
A posição social ocupada pelo africano no mundo colonial era distinguida pela condição jurídica que os dividia em livres e cativos. As diferenças de cor de pele eram marcas simbólicas de distinção social. Desta forma, a cor da pele ditava os limites entre liberdade e escravidão. Os pardos, por apresentarem a minimização dos traços africanos, conseguiam melhor condição econômica, dificilmente atingida pelos escravos, uma vez que os libertos formavam a ala trabalhadora urbana da sociedade colonial, desigual e excludente.
Os negros africanos se dividiram por nações de origem; como os angolanos e congoleses formaram a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e as Nago-Yourubás, formada exclusivamente por mulheres é a Nossa senhora da Boa Morte.
No Brasil, as culturas foram diversificadas e no contexto deste novo território, elas foram se remodelando, ressignificando seus símbolos e ritos, configurando uma religiosidade mais aberta a assimilações, de forma a abarcar influências do culto judaico, africano e português, presentes na veneração dos santos de devoção para a busca de benefícios, na utilização das artes mágicas e no gosto pelas festas, danças e rituais.
Desde o século XV os santos católicos já se faziam presentes na África por meio de atividades missionárias no processo de conversão no Reino do Congo, percorrendo outras regiões como Angola, Moçambique, entre outros, pois em muitos países da África, o cultos dos santos foi absorvido às religiões tradicionais e este fato serviu como um modelo de dominação colonial, marcados pela violência por serem negros, escravos e estrangeiros. Dessa forma é possível prever que muitos africanos já chegaram no Brasil convertidos.
As irmandades negras presentes no Brasil traziam em suas práticas na força de sua ancestralidade uma proximidade com o continente africano, muito conhecido por exaltar os ritos de passagem em sociedade. Os festejos de vida e morte traziam toda a pompa e exuberância, funerais luxuosos que buscavam trazer como qualidade além da homenagem ao morto, ajudando a trilhar o novo caminho para o outro mundo, mas uma forma de mostrar o poder da irmandade em cuidar de seus membros e enterrar seus mortos em exercício de solidariedade.
As Irmandades negras eram instituições de resistência, um lugar onde os escravos e libertos se fortaleciam diante dos desígnios do sistema colonizador. Espaços de prática de solidariedade dentro de uma sociedade que discriminava papéis e exaltava posições sociais.
A IRMANDADE DA BOA MORTE DE CACHOEIRA
As Práticas de culto a Nossa Senhora foi amplamente difundida por ser parte da forte tradição portuguesa e as festividades da Nossa Senhora da Boa Morte foram ressignificadas a partir da influência do catolicismo negro se tornou Nossa Senhora D’ Agosto. Ao encontro disto a Irmandade da Boa Morte de Cachoeira existia uma forte sublimação de sororidade no ato de devoção a memória das irmãs.
Na Cidade de Cachoeira, desde o século XIX, a devoção de cor exclusivamente feminina, sob a invocação de Nossa Senhora da Boa Morte, localizada na igreja da Barroquinha, atrás da igreja havia o terreiro de candomblé Àya Omi Aìrá Intilé, sendo este o primeiro terreiro urbano de Salvador, havia por sua vez, uma ligação entre estes dois espaços religiosos, pois os participantes do candomblé também participavam das atividades da igreja, configurando a ligação igreja-terreiro, santos-orixás uma forma de atuação importante de africanos, homens e principalmente mulheres atualizarem seus vínculos com a África.
A devoção a Nossa Senhora se fez presente a partir do pedido pelo fim da escravidão feito pelas africanas, atestando a participação das mulheres negras nos movimentos abolicionistas, formando em Cachoeira “corpus afroreligiosus”, entendido como o uso do poder institucional dentro da irmandade para buscar viabilizar alforrias de muitos escravos, sendo estes em sua maioria parentes e amigos homens.
A festa da Nossa Senhora da Boa Morte é realizada no mês de agosto no Município de Cachoeira, no Estado da Bahia. Antes dos dias de festa, tradicionalmente acontecem duas importantes cerimônias. A primeira é a eleição da comissão de festa do ano seguinte e a segunda, que acontece uma semana depois, chamada “esmola geral”. Além disso, agosto é um mês de resguardo, onde as irmãs se eximem das práticas da vida mundana, dedicando-se apenas a Nossa Senhora.
A “Boa Morte” fala da fé individual e profunda que está presente nos orixás, nos caboclos, nos santos da igreja, nos voduns. Mas acima de tudo, está presente a veneração e preservação do culto a MÃE. A Mãe de carne, a Mãe das águas, Mãe Yalorixá, a Mãe Nanã, mãe Equedi, a Mãe Nossa Senhora, a Mãe Mulher, a síntese do gênero feminino. A força da Irmandade da Boa Morte nos conta sobre a etnografia emocional presente no Brasil, nas terras do Recôncavo baiano. Aqui existe a busca pela liberdade, a busca pela ancestralidade remota e a única maneira encontrada por estas grandiosas mulheres, representantes poderosas que cravaram no Brasil o poder da mulher negra em um lugar comandado pelo patriarcado colonialista.
Que a força desta irmandade para exaltar a potência presente em coletivos organizados em prol de um ideal comum e principalmente o impulso de resistência da fé para a sobrevivência da religiosidade africana em território brasileiro, na busca por nutrir a relação umbilical do filho Brasil para com sua mãe África, permitindo, assim, que a educação desta criança-nação aconteça agora em um lugar de maior conscientização, reconhecimento, respeito e reparação histórica.
Fonte:
Festa da Boa Morte- Celebration of Boa Morte.
IPAC – Salvador: Fundação pedro Calmon; Cadernos do IPAC.