A palavra griô é um abrasileiramento da palavra “griot”, termo que define um amplo instrumental para buscar compreender o universo da complexa e fascinante trama das tradições orais afrikanas e afro diaspóricas.
Áfrika é diversa, seus povos estão em movimentos, suas línguas estão vivas e cada um de seus povos tem suas próprias formas de transmitir seus conhecimentos ancestrais.
Considerando-se a vastidão territorial, a riqueza e a pluridiversidade cultural do continente mãe, não vale buscar compreender quem são, como são, onde estão, como trabalham e vivem mestras e mestres tradicionalistas, colocando-lhes num único bojo, como se fossem uma massa homogênea, lhes categorizando de forma simplista como membros de uma “casta”, termo que está sob crescente ataque, sendo apontado como uma distorção das estruturas sociais do oeste afrikano.
Para os Yorubás, o mestre da oralidade é chamado Akapalo ” aquele que guarda e transmite a memória de seu povo”; em Wolof, o tradicionalista se chama Géwél , que significa: “formar um círculo em torno de alguém”, para os Fulas, Gawlo ou Mabo: Marrok’i para os Hauçás, jèly em Maninka e Banamá, Jali para os mandengues; Geseré ou Jaaré para os Soniké.
Além das encantarias que carregam as suas palavras, além do fogo de sua espingarda, do brilho de seu facão, da harmonia de seu canto, da força de sua oração, os tradicionalistas deixaram marcado nas histórias de Farafina – como é nomeada o continente africano pelos africanos – o seu lugar de confiança e continuidade, através de sua presença, conhecimento, encantamento, filosofia, mística, fundamentais na manutenção dos rituais das culturas ancestrais, mesmo depois de tantos séculos de explorações e violações coloniais.
A palavra “griô” é uma cilada metalinguística.
Pois carrega em sua gênese encruzilhadas de conflitos e contradições, esta palavra ganhou o mundo e atualmente ampliou-se o reconhecimento e a importância de sua identidade no contexto mundial globalizado. Com o passar do tempo foram se criando várias conotações positivas associadas aà palavra “griot” pelo mundo.
No entanto, alguns acreditam que isso mascara uma das grandes ambivalências do termo para muitos africanos ocidentais, pelo fato de se tratar de uma termo colonialista e pela falta de conhecimento que o resto do mundo tem sobre a extensão geográfica da oralidade e múltiplas tradições presentes em África. Os griôs, são queridos, mas ao mesmo tempo muito temidos e, por vezes, muito marginalizados.
Em Bamako, conheci uma jovem griota que se lamentava muito por ter nascido nesta linhagem, pelos preconceitos que muitas vezes sofria, em especial na hora do casamento, já que muitos homens não desejam se casar com mulheres griotas.
Em África, como ao redor do mundo, são várias as buscas por tentar compreender as origens e a linha do tempo e as transmutações deste termo.
Em 1985, o nigeriano Oumarou Watta sugeriu que o termo griô fosse uma corruptela da palavra “Gawlo”, como são chamados os mestres oralistas para o povo Fulá, também conhecido como Peul. Mas, o que é mais comum de se ouvir é que griot, palavra de origem francesa é uma denominação francesa dada pelo colonizador – em português, deriva de possível transliterção do termo português “criado”, trazendo também uma relação com as palavras “grito”, “gritalhão” e “gritaria”.
Os portugueses foram os primeiros europeus a invadirem o oeste africano e por muito tempo sua língua foi falada ao longo da costa senegambiana, adentrando para o interior.
O termo “criado” foi utilizado pelos portugueses para se referir aos tradicionalistas. Dizem que os estrangeiros deduziram se tratar de servos aqueles que sempre acompanhavam os soberanos e reis em Farafina. Após algum tempo, chegaram os franceses para realizar suas violentas investidas para domínio dos territórios.
O monge missionário Alexis de St. Lô, que viajou pela Senegambia entre os anos de 1634 – 65, relata em seus escritos a palavra “guiriot“, referindo aos mestres tradicionalistas com os quais se encontrou em sua viagem.
Relembremos o que disse Heloísa Piris em seu livro “Toques de Griô”:
O que todo o Jèli sabe é que essa palavra significa sangue, né? Pois enquanto há sangue dentro, há vida, não? Desta forma, o Jèli faz circular a história de uma pessoa, de uma família, de uma linhagem, de um clã, de um país. è isso que significa ser Jèli, repare que ele faz a história da nossa gente continuar viva. Importa mais saber o que ele significa para a vida da sociedade onde ele vive. Não importa se se chama jèli ou griô, a língua precisa apenas conhecer o sabor dos alimentos (…)
_ I Dya Alulalih!
E começou a narrar:
“_ Foi assim que o grande Sundiata Keita saudou Baloa Fasseke Koyate! I Dya Alulalih! Faça tudo para sempre unir! E depois que Sundiata Keita saudou Bala Fasseke, passou muito tempo e a expressão I Dya Alulalih se transformou em Diéli.”
A colonização francesa foi muito violenta contra os Griôs na África Ocidental. Buscou lhes perseguir e desvalorizar, por se tratarem de um símbolo explícito da soberania africana, por sserem os preservadores do legado dos antepassados, os conhecedores das histórias, representando uma ameaça para o sistema opressor.
Com o fim da colonização, o Griô passou a reconquistar o seu espaço em suas comunidade e, ao mesmo tempo, passaram a ser reconhecidos fora do continente, reverberando especialmente na Europa e em países onde existe grande presença de afrodescendentes, como é o caso do Brasil.
Aqui o ser Griô é uma dilatação dessas tradições de saberes e fazeres tradicionais africanos, ao encontro de saberes e fazeres dos povos autóctones, conhecedores dos segredos da terra.
O Griô brasileiro renasce na dimensão de experiências da diáspora a partir de um lugar marginalizado pelo centro colonizador e opressor que faz com que exige que ele se reinvente, se desenvolva perante as novas realidades diaspóricas e o encontro com novos biomas naturais e culturais.
O Griô da diáspora nasce de uma simbiose de resiliência e resistência cultural e espiritual e não se pode compreender quem são as mestras e mestres das tradições orais brasileiras sem compreender quem é um um Griô em África ou mesmo em nossas culturas originárias.
Rezadeirxs, parteirxs, raizeirxs, bonequeirxs, contadorxs de estórias, repentistxs, congadeirxs, jogueirxs, benzedeirxs, músicos, dançarinxs, mestrxs de Capoeira, marisqueirxs, pescadorxs, artesanais, artesãos, erveirxs, curandeirxs, pajés, ganhadeirxs…
A Associação Grão de Luz e Griô assim nos relembra que “o griô surge como uma metáfora da memória e ancestralidade do povo brasileiro, memória de vidas de povos que não se calaram e mantiveram vivas suas tradições e identidades em comunidades de re-existência, Griô ou mestre (a) é toda (a) o cidadão que se reconheça e seja reconhecido por sua própria comunidade como herdeiro dos saberes e fazeres da tradição oral e, que através do poder da palavra, da oralidade, da corporeidade e da vivência, dialoga, aprende, ensina e torna-se memória viva e afetiva da tradição oral, transmitindo saberes e fazeres de geração em geração, garantindo a ancestralidade e reafirmando a identidade de seu povo. A tradição oral tem sua própria pedagogia, política e economia de criação, produção cultural e transmissão.
Ainda que muitas mestras e mestres das tradições populares no Brasil sejam herdeiros culturais de linhagens familiares, uma pessoa pode desenvolver a sua maestria ao longo de sua vida, através de suas experiências e interação com o mundo, ao passo que em África, especialmente no registro ocidental, um griô deve nascer de uma família de griôs para ser verdadeiramente um guardião da tradição. É uma herança de sangue e ossos.
” A palavra Griô ao ser incorporada à cultura brasileira teve seu sentido ampliado nascendo agregadas ao ofício do griô outras ações, como a cantoria, dramaturgia, danças, além da contação de histórias, mas sem perder a sua referencialidade, quanto a valorização da transmissão de sabres por meio da tradição oral” – nos diz Helânia Thomazine Porto: ” Na perspectiva griô não se explica o mundo fragmentando-o; ao contrário, aborda-o por todos os ângulos possíveis, explica-os por parábolas, analogias, relações simbólicas e por experimentação”.
Por muito tempo que se estendem aos dias de hoje, os saberes e fazeres destes mestres foram mal vistos e marginalizados. No entanto tiveram e seguem tendo um papel fundamental no funcionamento das estruturas da sociedade brasileira desde os tempos da invasão colonial, como podemos ler no trecho da Enciclopédia da música brasileira que fala dos guardiões dos saberes e da oralidade:
Além dos oficiantes religiosos, esses personagens sabiam preparar tisanas, cataplasmas e unguentos que aliviavam os males corriqueiros dos habitantes da colônia, eram também capazes de curar doenças mais graves como a tuberculose, a varíola, a lepra, usando os recursos da farmacopéia tradicional
participaram inclusive do combate às epidemias que assolaram a Bahia em meados do século XIX; também sabiam curar distúrbios mentais ou espirituais, usando tratamentos combinados e complexos.”
No universo do griô afrikano, todo o seu conhecimento e sabedoria milenar tem seu fundamento nas raízes, nas estruturas, fazem parte da cosmogênese de seu povo.
Ao passo que cabe ao griô brasileiro e diaspórico se recriar, se reinventar, se relembrar, se reencantar na busca pela verdade e essência de suas identidades ancestrais, dentro de estruturas sociais racistas, machistas, imperialistas, preconceituosas, pós coloniais.
Sérgio São Bernardo, em seu livro “Direito e a Kalunga: a emergência de um direito inspirado na ética afro-brasileira” nos diz que no presente momento diversas mudanças estão ocorrendo nos países afrikanos e no Brasil, onde todos se preparam para o futuro, buscando modelos de combinar o moderno e o tradicional. “Este é o grande desafio do século XXI para os africanos e a diáspora”, nos diz São Bernardo.
Ao caminharmos de reencontro com as antigas cosmovisões, ao buscamos respeitar e ouvir o que nos dizem os mais velhos, as palavras e cantigas antigas, reconhecemos estar em busca de formas de vida originais, emancipatórias, decoloniais, em sintonia com o passado vislumbrando um futuro no qual cabe a construção de uma cultura libertária.
O ancestral não é uma categoria de algo que está prezo ao passado. Muito além do presente, a ancestralidade evoca todos os tempos. Ancestralidade é uma tessitura de vidas pessoais em bojos de vidas comunitárias.
Foi na ocupação do emblemático prédio 48 da Rua do Passo, no Pelourinho de Salvador da Bahia onde conhecemos o pintor chamado Grióthi, um afro-oriental, era também assim que ele se definia.
“Roberto Oswaldo só. só isso. Meu nome é orador, dom da palavra, 171. Eu devia assinar assim! Orador, dom da palavra, 171.
Por que 171?
Porque eu sou um contador de histórias. Eu sou 171 profissional. Minha vida inteira, eu fui 171.
Só que deixa de ser uma cascata, para ser um conteúdo histórico. por exemplo, o encontro meu com deus, o encontro da verdade que é o amor. Do que é a arte em si. Da arte preta, que eu não faço arte negra. O brasil todo é negro. Arte negra é coisa da etnia negra.
Eu sou um artista da etnia preta. Preta. Preto é uma etnia que existe no planeta e que ninguém nunca estudou como ele pensa, como ele anda, como ele é. O negro está todo misturado por todo o brasil, norte, sul. Mas o preto é puramente uma etnia. O que ele pensa? O que ele faz? Os orixás não são negros. São energias do humano. Podem ter nascido em árvores, mas são a energia do humano.
Arte preta. Pretinha. Preta. Pode ser um movimento artístico, mas é um movimento de consciência. Qual é a nossa? Onde está o preto? Eu tenho que ser capoeirista? Preciso ser jogador de futebol? Tenho que morar na favela? Não precisa ser isso para ser uma arte preta. Em São Paulo era a mesma coisa, No Rio era a mesma coisa e na Bahia é a mesma coisa. Todo mundo tem obrigação de ser capoeirista. Só porque eu sou preto? Por que eu sou preto eu tenho que mostrar que sou preto? Eu sou preto e pronto.
A vida e a morte são o princípio e o fim. Todos os dias sua pele morre. Todos os dias você tem pele nova. Isso é morte! Eu não estou morrendo. Eu estou me desfazendo! 75 anos é evidência de que a matéria começa a desfazer. Não é doença. Eu tô com minha cabeça lúcida, com minhas ideias lúcidas. Nós somos eterna falência. Nascemos para morrer. Falência. Falecer. Crescei-os e multiplicai-vos. Pra ser assassinado na rua? Sendo preto, branco, o que for? Ou é crescer e multiplicai o ser? Multiplicar todas as ações para a melhora do ser? Pra isso tem que ter muita paciência.
Ontem eu ví uma frase muito incrível: a velhice e o desfazer da matéria não acaba o amor. O amor está nos olhos de quem quer ser amado. O velho também ama! O que é o amor? O amor não é só penetração, o amor é carícia, carinho é o bem servir
O ser útil a você. Não é dizer que eu sou um cara bom. Eu nem sei se presto. E acho que faço uma boa arte. Mas quem compra? Ninguém.
Tudo muita conversa. A vida é cheia de conversa fiada. Mas se você não tirar seu rabo da linha do trem, o trem te pega! Não olhe para onde você anda, que o trem te pega”.
Na força da lua cheia de câncer do dia 1º de julho de 2015, Oswaldo Roberto griot fez sua passagem, alçou seu vôo de liberdade.
Mo Maie
Mariana, Novembro de 2020

Mo Maiê é Musicista, Arte-educadora, Capoeirista, Artesã de instrumentos musicais africanos e Pesquisadora do Universo Musical do Transatlântico afro- ameríndio. Trabalha a transversalidade das artes, com ênfase em música, literatura e performance, conectando ancestralidade, arte da terra (land art) e tecnologia social. Ao decorrer de sua carreira, desenvolveu projetos, shows, criação de trilhas
sonoras para dança e teatro, residências criativas, vídeo documentários, publicações gráficas e literárias em parceria com artistas, coletivos e redes criativas no Brasil, África, Ásia, Oriente Médio e Europa. É idealizadora da Revista eletrônica Terreiro de Griôs e da Escola Ateliê Nomad Djalô, ambos trabalhos independentes focados em pesquisa e arte educação,
sob o viés da afrocentricidade e valorização de nossas culturas originárias.